quarta-feira, 2 de abril de 2014

As manipulações da osteopatia colocam a vértebra no lugar?

Depois de um relativamente longo período sem postagens no blog, consegui finalmente arranjar um tempo para escrever mais um artigo e falar de algo que é bastante comum de ouvir de pacientes e, até, profissionais da saúde. É a famosa frase: "colocar a coluna no lugar". Seria possível com uma técnica de manipulação de alta velocidade - ou thrust (estalar a articulação) - conseguir encaixar uma vértebra que estava mal alinhada? Isso é realmente possível? E se for possível, não poderia trazer riscos ao paciente?






Muitas pessoas acreditam que pelo fato de haver o som da cavitação ou estalo da articulação ao realizar as técnicas de manipulação vertebral ou de qualquer outra articulação do corpo, a colocação da vértebra no lugar seja uma verdade. Fui fazer uma pesquisa e tentar entender de onde pode ter vindo essa crença. O que achei foi que antes do advento da osteopatia, quiropraxia ou terapia manual, existia um tipo de profissional sem treinamento médico ou fisioterapêutico chamado bonesetter ou ajustador de ossos. Eles trabalhavam com algumas das técnicas que se usam atualmente na prática da osteopatia e atendiam desde dores em geral até fraturas, corrigindo o alinhamento delas, inclusive. Acredita-se que pela fama de ajustador de ossos, criou-se a lenda de que as técnicas de manipulação fossem capazes de produzir o efeito de encaixar as vértebras.
Ainda, o som do estalido cria essa ilusão também. Nossas articulações são lubrificadas e nutridas pelo líquido sinovial e deste se produz bolhas de ar dentro da articulação. Quando se realiza o thrust, a cápsula articular é alongada e os ossos da região se separam criando uma pressão negativa, expulsando a bolha de ar que se formou lá. Dessa forma, há o famoso som do estalo. Tanto que se tentarmos novamente manipular a região, nenhum som aparecerá pois demora-se um certo tempo para que uma nova bolha se forme. Uma boa analogia a essa explicação seria o da garrafa de refrigerante. Sempre que a abrimos há o famoso som do gás escapando. Se a fecharmos e abrirmos novamente, nenhum som será feito a não ser que esperemos algum tempo.
Bom, um mito já foi desvendando, certo? Então, vamos à pergunta mais importante: o que realmente acontece quando se estala uma articulação?
Antes de chegar à explicação, é preciso entender alguns pontos da anatomia muscular a saber:


  • fuso neuromuscular
  • órgão tendinoso de Golgi (não confundir com o Complexo de Golgi, uma organela de nossas células)


O fuso neuromuscular (FNM) é um tecido que fica localizado no centro do ventre muscular e é responsável por informar ao nosso sistema nervoso central (SNC) como os nossos músculos estão funcionando, principalmente, quando se trata de posicionamento, velocidade e mudança de comprimento. Os FNMs ficam mais ativos quando há uma mudança brusca de comprimento muscular, ou seja, quanto mais rápido for o alongamento do músculo mais ativo o FNM será.
O FNM e suas inervações esquematizados. Observe no destaque em verde a Fibra 1a, ela é a inervação sensitiva do FNM e é por ela que o SNC é informado das mudanças do comprimento muscular. Ao receber a informação do FNM via Fibra 1a, ocorre uma sinapse na medula com neurônio motor alfa dando a ordem de contração do músculo impedindo uma possível lesão muscular. Já o destaque em vermelho, o neurônio motor gama recebe a informação para contrair ou relaxar dependendo da situação.

E qual é a resposta quando isso ocorre? Uma potente contração muscular que impede que o músculo continue a ser alongado de forma perigosa. Essa é uma forma de proteção que nosso organismo tem para prevenir lesões musculares. Um exemplo fácil de entender como o FNM e o reflexo de estiramento funcionam é a famosa "pescada" (que, aliás, espero que não estejam fazendo enquanto leem meu texto). Quando caímos no sono, mas estamos sentados em um carro, por exemplo, a tendência é o relaxamento da musculatura que sustenta nossa cabeça ereta. O resultado disso é a queda rápida dela, criando uma mudança brusca do comprimento dos músculos extensores do pescoço. Como resposta, há uma rápida contração desse mesmo grupo muscular impedindo que você bata a sua cabeça e também que haja alguma lesão desses músculos. Outro exemplo, é o alongamento muscular explosivo. Quanto mais rápido for o alongamento mais ativo o FNM será, como explicado. Por essa razão, os alongamentos devem ser feitos de forma lenta e progressiva, pois dessa forma, o FNM não é ativado e ele permitirá que o músculo seja alongado. Portanto, nada de alongamentos rápidos. Além de nada eficaz, você ainda corre o risco de provocar uma lesão muscular.

Esquema do reflexo de estiramento que já foi explicado na figura anterior.

Já o órgão tendinoso de Golgi (OTG) está localizado, como o próprio nome sugere, no tendão de nossos músculos e sua função é a de informar nosso SNC o grau de tensão que existe nesta região muscular. Quando há um aumento excessivo, há o "desligamento" da ordem de contração muscular fazendo com ela pare totalmente. Isso serve também como forma de proteção para impedir que haja uma lesão tendínea ou avulsão óssea (quando o tendão arranca um pedaço do osso por conta da contração explosiva). Quem treina musculação já deve ter tido uma experiência de como o OTG funciona. Ao fazer muito esforço para realizar um exercício e, em certo momento, o músculo simplesmente falha para erguer o peso. Pois é o OTG entrando em ação. Portanto, ao invés de ficar frustrado de não conseguir fazer aquela repetição, agradeça ao seu organismo íntegro que impediu que houvesse uma lesão séria.

O OTG esquematizado.

Explicados esses conceitos, de que forma eles se encaixam no tema deste postagem? Será que eles também podem atrapalhar? E a resposta é sim no caso do fuso neuromuscular. Acontece que por mais perfeito que seja o funcionamento desta estrutura, ela é passível de falhas. 
Quando sofremos um trauma (uma queda ou pancada), carregamos um peso excessivo de forma inadequada ou sofremos uma mudança brusca de movimento, o FNM pode entrar em falha. Um exemplo bom de se entender o mecanismo de lesão é quando estamos dirigindo e, por alguma razão, resolvemos pegar um objeto que está no banco de trás do carro. Realizamos, então, um movimento de rotação, inclinação lateral e extensão de tronco. Porém, o carro ainda está em movimento e naquele momento, ele passa por um buraco, encurtando bruscamente todo a musculatura que estava contraída para realizar aquela função. Quando algum desses momentos ocorre, gera-se o que chamamos de hiperatividade gama e os FNM ficam extremamente excitáveis. Como no exemplo que citei ou quando sofremos uma queda, o nosso sistema nervoso central passa a receber uma informação errada do fuso neuromuscular. Agora, o SNC identifica os músculos encurtados como se eles estivessem relaxados. E quando eles deveriam estar relaxados, o sistema nervoso identifica como alongados. Qualquer movimento que ocorra naquela articulação onde está acontecendo a hiperatividade gama vai gerar um estímulo tão grande no SNC que impedirá qualquer mudança de posicionamento articular. Perceberam a confusão? Estão conseguindo acompanhar? A consequência disso é o bloqueio do movimento daquela articulação pois o músculo ficou espasmado e não permite mais que a vértebra consiga efetuar seu movimento normal. Notem que em nenhum momento, eu mencionei que o segmento ficou fora de lugar. Ele simplesmente perde sua função de mobilidade, ficando, portanto, hipomóvel.

Esquema da lesão osteopática vertebral e a consequente hiperatividade gama. Na primeira figura, ocorre o trauma causando um encurtamento abrupto do FNM. Na segunda figura há a ordem do SNC para aumentar a a descarga para o FNM. Na terceira e quarta figuras, mostra então a adaptação ocorrida na 3a vértebra lombar ocasionando a disfunção vertebral.

A hiperatividade gama e consequentes espasmo muscular e disfunção vertebral.

Então, de que forma, o osteopata pode ajudar um paciente que esteja com um bloqueio articular? Ele pode lançar mão de várias técnicas.


  • Técnica de energia muscular: é aquela em que se coloca um alongamento do músculo espasmado que está bloqueando a articulação ao mesmo tempo que se pede que o paciente faça a contração isométrica (há aumento da tensão muscular mas sem movimento articular) deste mesmo músculo. Dessa forma, há um estímulo importante do OTG fazendo com que haja o relaxamento muscular ao mesmo tempo em que ele é alongado, desaparecendo a hiperatividade gama e restaurando a mobilidade da vértebra.
  • Técnica articulatória ou de mobilização: como explicado, o FNM é ativado em mudanças rápidas de posicionamento. Mas há uma forma de enganá-lo. Quando se aplica movimentos suaves no segmento bloqueado, consegue-se aos poucos relaxar a musculatura contraturada e, dessa forma, inibir o mau funcionamento do fuso neuromuscular. O resultado é o mesmo da anterior: a restauração da mobilidade articular daquele segmento.
  • Técnicas de stretching muscular: o alongamento rítmico e forçado do músculo força o SNC a enviar uma ordem ao FNM para que diminua sua excitabilidade e dessa forma, há o relaxamento muscular, devolvendo a função articular. Além disso, o OTG é estimulado com essa técnica que faz com que haja inibição da hiperatividade gama.
  • Thrust ou manipulação de alta velocidade: essa a maioria das pessoas conhece. O paciente é posicionado e a técnica é feita de forma rápida o que não permite que o paciente e o seu SNC possam impedir a sua realização. A cápsula articular e os músculos são tão rapidamente alongados que nem o FNM consegue impedir que isso aconteça mas ao contrário do que se possa pensar, a técnica é tão sutil que envolve riscos muito pequenos à integridade do paciente. Dessa forma, adivinhem? Sim, a mobilidade vertebral é restaurada e o bloqueio que antes havia, não existe mais. Há, ainda uma resposta neurofisiológica que faz aliviar a dor do paciente. Mas isso é assunto para outra postagem.


O padrão da correção. Na figura à esquerda, observa-se a hiperatividade gama. Na figura à direita, a resposta de normalização frente à intervenção do osteopata


Notaram que eu deixei a manipulação por último? Obviamente, foi proposital. A tendência é as pessoas associarem a osteopatia a simplesmente estalar as articulações o que não é verdade. Há uma gama de técnicas que o osteopata pode lançar mão. O thrust é apenas uma delas. Já escrevi aqui no blog que em termos de efetividade não há diferença entre a manipulação de alta velocidade e as técnicas articulatórias ou de mobilização.
Portanto, caros leitores, não caiam mais no erro de falar que você foi no osteopata colocar a coluna no lugar. Aliás, eu teria medo de ir a um profissional para colocar minhas articulações no lugar. Vocês não teriam?
Querem uma explicação rápida para tudo isso? Digam que vocês foram ao osteopata restaurar a mobilidade articular de seu corpo. Pode não parecer tão divertido, mas pelo menos não haverá mais a propagação de uma ideia errada.
Espero que tenham gostado e se puderem, compartilhem para quem se interessar!


Comentários
1 Comentários

Um comentário :

  1. Caraca, se todo pós-graduando que iniciasse o curso de osteopatia tivesse acesso é essa sua postagem, rssss, teríamos todos um excelente início. Obrigado, repassarei para alguns iniciantes.

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